quinta-feira, 26 de julho de 2007

Canção

Eu quero o fio
o frio fio fino da navalha constelar
a lâmina de dois metros que dança
no escuro de um sonho obscuro.

Meu um quarto, meu inimigo
queria que nos fossem buscar no Piauí
tentaram nos encontrar no Piauí!
Mas não é longe o bastante
e já cascos grossos pisoteiam a grama que havia por lá
Busquem-nos nas estrelas,
Busquem-nos nas explosões solares, nos confins das galáxias, no centro da Terra!
Busquem-nos no inferno, não me importa!
Busquem-nos no inferno e fiquem por lá!

Eu queria a minha amada,
mas a minha amada não possui boca,
não possui olhos, nariz, orelhas.
Ela não possui pernas bem torneadas, seios fartos.

A minha amada é só face,
uma face laminada e um sorriso espelhado.
Mas ela sabe dançar.

Só o corte nos une.

domingo, 22 de julho de 2007

O Jardineiro

"As chaves", ela pediu mais uma vez, sorrindo. Os dentes cor de ouro lançando reflexos de uma luz suja contra o seu rosto contorcido. "Caído aos pés de uma mulher", ele pensou em silêncio, enquanto a pressão de sucuri aumentava gradativamente contra seu saco.

As pontadas de dor aumentando cada vez mais, a ponta do salto numa luta para penetrar o ponto mais frágil de seu corpo. "Eu só quero a chave", ela insistiu, sua voz de sereia/guerreira, torcendo o calcanhar do pé e aumentando mais seu sorriso dourado. "Talvez seja hora de trocar essa lâmpada", o pensamento mais absurdo passando por sua cabeça, a dor lancinante barrando sua razão e ativando os antigos controles do desespero, enterrados durante tanto tempo desde que perdera seu coração.

Ele procurou alcançar o bolso de trás de sua calça, mas o esmalte vermelho descascado das garras da mulher foi enterrado fundo na carne de seu pulso: "eu só vou repetir mais uma vez, antes de estourar suas bolas", ela disse, aumentando assustadoramente a pressão.

Ele a conhecera no canto mais sujo da cidade, jogada entre dejetos de mendigos, uma pequena flor que necessitava de cuidado e atenção. E a havia regado, ah como havia!, com todo o carinho que seu peito oco poderia oferecer. O batizado havia sido feito exatamente naquele local, naquele pequeno apartamento, e ela rapidamente evoluíra de uma pequena muda para uma mulher madura, que o estava ameaçando agora com o salto de seu scarpin.
"Malditas plantas", ele pensou e hesitou mais uma vez, já anestesiado, enquanto sentia o pisão e a vista escurecia.



Três horas mais tarde, acordou com as calças ensangüentadas, jogado naquele beco familiar, aquele pedaço de lixo urbano.

terça-feira, 17 de julho de 2007

Pois então...

Resolvi contar algo que vivi durante minha passagem pela Ásia.

Alguns amigos íntimos já sabem, mas vale a pena repetir que estudei durante cinco anos em um colégio interno na Índia. Na época meu pai era um empresário gorducho e metido da Embraer (isso foi logo antes dele ser acusado de desviar dinheiro e iniciar a decadência da minha família que terminaria com esse mesmo gorducho, agora 10 quilos mais magro, pendurado na cristaleira da sala com uma corda em volta do pescoço); portanto viagens eram freqüentes.

No entanto, aquela situação era diferente: por conta de uma negociação entre a Embraer e uma desenvolvedora indiana de sfotwares direcionadas à aviação, minha familia teria de passar cinco anos em Bombaim. E lá fomos nós - nosso já falado empresário gorducho; um garoto loiro com curiosos olhos da cor do mel, por volta dos 9 anos; e uma passiva dona de casa, sempre sorrisos para seu filho e sempre resmungos para seu marido - criar algumas curtas raízes numa capital irritantemente populosa.

O desembarque já revelou as grandes diferenças culturais que teríamos de enfrentar. Em primeiro lugar, o avião teve que pousar em movimentada avenida, já que a pista de pouso do aeroporto estava tomada por, mais ou menos, 400 vacas, animais sagrados no país asiático em questão. A aterrisagem foi tensa e algumas dezenas de pobres indianos perderam a vida sob as rodas do orgulhoso avião verde-e-amarelo da Embraer; mas por sorte estávamos na Índia e a morte de um cidadão tem pouca importância quando a taxa de natalidade é de 100 mil por minuto.

Em seguida, por falta de uma escada de desembarque (por Vishnu, estávamos no meio de uma avenida, afinal de contas), 570 indianos, funcionários do aeroporto obviamente, formaram uma escada humana para que nós, ocidentais e ricos, pudéssemos descer com toda a segurança e conforto que nós merecíamos. Uma coisa ficou gravada naquele momento em minha cabeça: não poderia sair daquele país sem um bebê indiano de estimação!


(continua...eu acho)

domingo, 1 de julho de 2007

Cromatismos de Cinza

Uma case pesa muito, eu juro. Você pode ter uma e carregar uma guitarra dentro, mas você não sabe o que é realmente desconfortável até carregar um baixo dentro de uma semi-case nas costas.
Você sabe, o baixo vai balançando e batendo contra a parte de trás das suas pernas. E nem pensar em andar rápido! Não, não! Nem tente!

Conheci um amigo baixista que perdeu ambos os braços assim, foi horrível... O infeliz tava na Faria Lima ainda, correndo atrás do Ipiranga 477P. O problema é que as alças da semi-case dele eram realmente de ótima qualidade. O atrito do tecido contra o tecido, a pele, os músculos e, por último, os ossos foi devastador e extremamente rápido.
Conta-se que havia por ali um grupo de estagiários saindo para seu horário de almoço (era 13:17, de acordo com o relógio do canteiro central). À medida que os respingos vermelhos manchavam suas impecáveis camisas sociais bege com tímidas listras azuis (você sabe, a fnac é uma empresa séria, exige uma imagem impecável), eles foram caindo, desmaiados de horror.

Pois é, como eu disse era horário de almoço. Ninguém queria perder o tempo de seus preciosos pratos montados com um pobre adolescente, não mais que 15 anos, mutilado e caído no chão, em choque com a dor alucinante da perda de seus membros.
Três passantes até jogaram algumas moedas de cinco e dez centavos no chão, como uma esmola. Juro.