sábado, 26 de janeiro de 2008

Colírio

Direto no joelho.
Ele gemeu, desviou o olhar enfurecido e pulou por cima da vareta de ferro estendida.
"não nos é permitido julgar esse tipo de situação"
Enquanto as britadeiras furavam nossos Tímpanos & Almas, eles cambaleavam, passo por passo, atingindo, com a Vara ou a Muleta, passantes apressados que se esticavam para alcançar a entrada de vidro e alumínio da estação.

Eu tinha Aquele sorriso no rosto. Enquanto os óculos escuros escondiam meus olhos vazios, eu fumava & fitava a cena. Durante uma irritação crescente de demora e espera, vendo repetidos e familiares rostos, aquilo me entretinha.

Na Era da Informação, ainda encontramos Aleijados guiando Cegos.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Esponja

Engoli o comprimido sem pensar. "foda-se"
"é como nanorobôs triturando neurônio por neurônio do seu cérebro e reconstruindo no formato de uma montanha russa."
"ah..."

Fui buscar mais uma cerveja, enquanto esperava algum efeito ridículo de euforia daquela porcaria Sintética. Quando voltei para a pista, segurando a Long Neck de Eisenbahn, senti as pupilas dilatando nervosamente. E então tudo o que fazia sentido eram as bocas. As bocas vermelhas, as bocas pálidas, os lábios carnudos e os lábios finos e retos. As bocas para fora, como bicos, e as bocas para dentro, Ressecadas como cadáveres. Todas as bocas ocupavam o centro da minha Visão, armada como uma Teia.
As bocas estavam em todos os lugares, beijando, bebendo, falando. Cada boca aberta era uma Projeção Egocêntrica. Cada boca fechada era uma espera velada pela chance de mesma Projeção.
As bocas criavam o círculo social e as bocas mordiam as portas de banheiros, arranhando com os incisivos a madeira velha e pintada de Vermelho.

Senti o chão abaulando, como se sendo erguido pela terra num fundo de garrafa. Meus braços eram compridos e estavam esticados ao infinito pela Visão. Cada unha media cinco metros. Senti a madeira familiar de meu Trono abaixo de minha palma direita, enquanto acariciava os minúsculos lábios daqueles projetos de Vida com os dedos longos da mão Esquerda. Escolhendo. Sentindo.

"uma vez, um certo escritor contemporâneo declarou que Todos os Prazeres são Orais", falei para mim mesmo, enquanto começava a sentir a Mastigação Incessante brotando como um cogumelo acima de meu umbigo.
Som de unha na madeira.

terça-feira, 15 de janeiro de 2008

Um texto imcompleto, descoberto no gelo da criatividade.

Perdi o último trem da noite. Desci correndo as escadas da estação e ele já acelerava e guinchava pelos trilhos de ferro.
De repente senti Medo. As luzes frias piscavam, a estação tremia com o movimento do trem se afastando.

Por algum motivo eu não gritei. Sentia vontade de passar por aquela pequena porta eletrônica, com metade da minha altura, que dava acesso aos trilhos. Biquei a trava e engatinhei pela passagem, entrando num pequeno corredor de concreto, medindo uns dois metros de altura e vinte de comprimento. No final, podia ver uma porta de madeira gasta, uma placa de aço na porta, como a indicação de algum gabinete.
Me aproximei. "Fevereiro". Girei a maçaneta antiga de trinco e entrei.

Um amplo corredor, as mesmas luzes frias, em menor quantidade, piscavam, impedindo que eu visse o comprimento do lugar. Nas paredes laterais, altas prateleiras, com uma infinidade de pequenas caixas estreitas, coloridas. Conseguia ouvir pequenos guinchos de ferro ecoando.
Andei, imaginando haver alguma passagem no final do corredor.
Ao fim das prateleiras, encontrei uma bifurcação.

Sempre estive vivendo no Agora. Numa era de velocidade crescente, a única presença do futuro é a Aposentadoria Privada & a Pressão Familiar para um casamento. Claro que minha família é antiquada. Conheço casos em que só há aposentadoria. A velocidade dos trens, das motos e das pessoas pelas passarelas suspensas era a Velocidade de meus batimentos cardíacos, do ar entrando pelo meu corpo, o próprio ritmo de minhas células morrendo e se separando em mitoses infinitas.

Ao fim de cada bifurcação, o início de um novo corredor de prateleiras. À esquerda e à direita, o fim de outras prateleiras, indicando outras bifurcações. Algumas escadas que levavam a níveis superiores exatamente iguais aos anteriores, com luzes frias piscando e pulsando ao ritmo distante dos guinchos de ferro. Tinha um cheiro de Passado, onde eu não sentia o ritmo frenético do ar e a passagem rápida do Tempo.

Afirmam que a culpa é dos Celulares, Rádios, Televisões e Internet. Algo a ver com uma ressonância permanente na Terra, que aumenta vertiginosamente de acordo com a Interferência. Num labirinto catalogado, onde embrulhos nunca iguais desfilavam pelos meus olhos, todas as ressonâncias Congelavam, todas as mitoses Congelavam, todos os cheiros e cores e respirações Congelavam. Encontrei a Paz.

domingo, 13 de janeiro de 2008

Inconsciente

Uma conversa de bar e você está entretido. Engolindo cerveja e falando nada que tenha real importância. A cerveja continua subindo e descendo no copo e você começa a perceber que Ela já está rindo demais. Talvez até se mexendo muito.
Os outros dois tentam contê-la, mas você acaba achando que vale a pena Observar um pouco, ver até onde se pode chegar.
"mais uma, seu Myag". Apelido carinhoso, uma gracinha.

Ele vem com Pressa, precisa parar Rápido, entregar o dinheiro Rápido e partir Rápido para fazer outra entrega Rápida. Vai estacionando a moto de ré, o motor ainda ligado enquanto ele a empurra por cima da calçada.

Você faz de propósito, conta mais algumas piadas e serve mais um pouco de cerveja, o copo descendo e subindo. Não que você fosse esperar Exatamente Isso, mas digamos que você sabia que algo interessante poderia acontecer. Ela ri cada vez mais alto, mexendo-se muito, e os pés da desconfortável cadeira de plástico começam a dobrar e dançar. "ela joga bastante a cabeça pra trás e...que maldita fumaça!"

Acontece Rápido. O grito, o motor engasgando, o cheiro forte de queimado.
"desculpe...desclpe...desculpe..."

quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

Feliz ________

este conto é dedicado ao nosso amigo de Fevereiro. aonde quer que você esteja, vivo ou morto, saiba que seu trabalho sempre será Reconhecido.


O papel é importantíssimo. Eu escolho a dedo suas cores, extendo-o sobre minha mesa de trabalho, preocupando-me em não deixar espaço para ranhuras, dobras ou amassados. Ainda gasto alguns minutos observando sua cor e medindo cuidadosamente as matizes, de forma a combinar com eficiência.

Depois é a hora de começar a dobrar. Uma volta, puxo para o lado do cotovelo esquerdo, outra volta e o cotovelo direito, uma dobra reta e o queixo. Intercaladamente, formando um belo leque, de variadas cores, espessuras e tamanhos. O leque é o Toque Final, a Rosa que desabrocha sobre o embrulho. É ele que permite a variedade de minha coleção.
Às vezes me pergunto como as pessoas conseguem sustentar a frustração de ganhar um presente sem Leque. Simplesmente deixa de ser um presente, é só mais uma caixa Idiota, com um papel amassado em volta.

Mas não eu. Sou cuidadoso, meticuloso até. Alguns, poucos é verdade, ainda diriam que se trata de fixação, TOC ou qualquer outra palavra de baixo calão. Não. É Mentira. Trata-se de Arte. E a Arte não pode ser contestada por pessoas de pouca visão.

De qualquer forma, é a hora da catalogação. O software que comprei especialmente para esta tarefa produz as etiquetas, enquanto eu as imprimo e as checo, uma por uma, preocupado com possíveis erros que poriam abaixo minha grandiosa Missão.
Um por um, os embrulhos são dispostos em fileiras, separando-os através de diferentes Critérios: espessura, largura, cor, possuidor ou não-possuidor de ângulos, peso e cheiro. Isso facilita a marcação das etiquetas, é claro, e o único motivo para a utilização de tantas subdivisões e a Facilidade, Agilidade e Praticidade de meu Trabalho.

Eu ignoro o sangue pisado embaixo de minhas unhas e mantenho o trabalho no ritmo normal: a fraqueza dos dedos não é Desculpa para a fraqueza moral ou fraqueza da alma.
Os itens são cuidadosamente inseridos em seus espaços, já devidamente planejados em minhas lustrosas Prateleiras.
Ao fim do dia, olho para minha Realização, ignorando o cansaço e o tremor nos tendões de minhas mãos. Os nervos contraem-se repulsivamente, como Vermes por baixo da pele. Não importa quantas mãos me custarão, sou Responsável e já deixo separada a próxima lista de compras para a manhã seguinte.

Amanhã Recomeço.

terça-feira, 1 de janeiro de 2008

Porque afinal de contas...

feliz ano novo, ahn? uma garrafa de vodka e um maço de cigarros.
ah, você acha deprimente?

olhando pela varando daquilo que pode ser minha casa, eu continuei vendo os carros passarem.
ok, as pessoas estavam um pouco mais alegres. gritando pelas ruas, buzinando um pouco e se sentindo felizes. ok, eu vi tudo isso. mas o que eu quero dizer é que os carros continuaram Passando pelas ruas, entende?
os carros continuaram Passando pelas ruas e eu continuei vendo muitas janelas Apagadas. igualzinho, deixe-me ver...Ontem. é, e Anteontem também.

não não, não olha desse jeito. eu quero que você se Divirta. juro que eu Quero. quero que você se Divirta e quero que você tenha um Ótimo ano Novo. porque, depois de tudo, é só isso que importa.
o que Importa de verdade é que você tenha um Ótimo ano, se Divirta, ouça Boa música e viva uma Boa vida.

mas ainda assim, eu quero que você saiba: eu continuo Aqui. Arranhando. Comendo. Bebendo. Cheirando. Gozando. e querendo Mais.
Mais.